sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Jairo: Um conto sobre o "pré" e o "conceito" - Mochila Preta.

 

Ato 1: Uma Semana.

 

 

 Uma semana. Uma semana? Acho que é isso, faz tempo desde que olhei o calendário pela última vez, mas deve faltar isso mesmo. Acredito estar animado para isso, faz tanto tempo..., mas vou manter minha fé, ela foi tudo que me sobrou nos últimos 15 anos. Anos infinitos.

     Eu levantei na hora que foram servir as quentinhas (ou marmita, como minha mãe dizia), foi uma briga e tanto para todo mundo comer, mas como fazer se dão 4 quentinhas numa cela que tem 13 pessoas? Tentei dialogar:

- Aí, rapaziada, se dividir isso daí todo mundo vai comer – tentei avisar aos meus “colegas”.

- E eu lá sei se vai ter algo amanhã para dividir! Vou fazer pelo meu – Disse o Onça, meu “colega” de cela, ele ainda vai ter muito tempo aqui.

  Decidi não comer, não valeria a pena brigar, como já disse, eu tenho uma semana... e acho que isso me faz feliz. Fui beber água da caixa que tem aqui, graças a Deus nesses últimos tempos tive o privilégio de ir para uma cela melhor, ninguém aguentaria passar os primeiros anos vivendo com mais de 20 pessoas em um lugar que foi feito para 5, infelizmente o sistema funciona assim, pelo menos foi como funcionou para mim. Depois da água, percebi que tinha que continuar minha leitura, fico feliz de ter estudado o suficiente para saber ler, acho que já teria morrido aqui se não fosse por isso, uma professora da 8ª série uma vez me disse que conhecimento é poder, um tempo depois eu percebi que só é poder se você está acima de alguém. Eu nunca estive acima, mas sempre na margem.

- Hoje é dia de jogar bola, se o Pereira vir de sacanagem de novo eu passo ele – Quem disse isso foi o Onça, ele é conhecido assim porque ele mata mesmo, sem dó nenhuma. Eu tenho medo dele.

- Onça, mas se você fizer isso você vai passar mais tempo aqui – Disse o Magro, ele é tranquilo depois de comer.

- E eu vou sair daqui? Eu sou bicho solto, porém prefiro ficar preso aqui, lá fora eu não duraria nada, estou jurado de morte por todo mundo. – Isso é verdade, depois que ele matou o cunhado do delegado Jair na sua última “saidinha” todo mundo quer matar ele.

  Eu tenho treinado muito a minha calma ultimamente, sei que tenho pouco tempo aqui mesmo, não posso vacilar. Eu quero tanto voltar pra casa, tenho que pedir desculpas a minha mãe, eu sinto tanta falta dela. Também quero voltar para a igreja do pastor Valter, ele tinha um grande amor pela a minha vida, eu espero que ele ainda ame as pessoas como ele dizia que a Bíblia fala. Eu não sou um merecedor de compaixão de ninguém, mas acho que Deus deve me amar... eu não quero ir para o inferno. De vez em quando aparece um grupo de igreja aqui e pregam para a gente, eles falam de arrependimento. Eu sinto isso, mas como eu vou e não peco mais se eu vivo no núcleo do pecado? Ainda bem que me falta apenas uma semana.

...

  Durante o tempo o horário de sol eu peguei um livro, foi doado, se chama Vida de Droga do Walcyr Carrasco. Lembro que minha mãe assistia a uma novela escrita por ele quando chegava do trabalho, era a forma dela de lazer. O livro me faz me sentir próximo dela, mesmo não gostando da história, eu fico bravo em ver pessoas desperdiçando a vida por futilidade. Eu sou um hipócrita mesmo. O problema é que sou bem pior que qualquer personagem lá, pois sou real.

Durante o jogo a bola veio para o meu lado. Não prestei a atenção, mas o Onça gritou para que eu chutasse a bola de volta, acabei chutando a bola na direção do Pereira. Ele fez um gol. Acho que vou morrer.

Ao perceber que um conflito iria se formar, veio um guarda mandar a gente de volta para as celas. Ótimo, vou ficar no mesmo lugar do cara que quer me matar, logo agora que falta uma semana. O Onça só entrou e dormiu, nem parece que eu fiz merda, bom pra mim, eu acho. Eu volto a ler, o livro me faz refletir sobre que as vezes da para dar uma virada na vida. Bom deve ser fácil se você é um adolescente classe média, já que o livro se trata de uma. Eu não tenho perdão, não para as pessoas. Sou um monstro, eu sei disso. Não aguento mais viver com tanto remorso dentro de mim. Semana que vem deve passar, pois daqui a uma semana terei pago. Pago de modo legislativo, pois a sociedade nunca vai me perdoar.

- Se eu não fosse sair dessa cela por causa disso eu te matava agora – Disse o Onça quando me deu um soco na cara.

E assim foram meus próximos minutos: soco na cara, chute na barriga. Quando eu caí, Onça e Magro, começaram a me chutar e pisar em mim. Foi quando o guarda Silas falou:

- Já tá bom isso aí, se continuar vão pra solitária – Eles pararam e foram para as suas camas.

  Eu fiquei no chão, não conseguia levantar. Por que? Eu sei que fui ruim, mas por que? Não mereci isso, eu só chutei uma bola. Mas é assim que o mundo funciona aqui, o Onça já matou por bem menos que isso, eu devo vigiar. Calma. Falta só uma semana. Uma semana. Se eu sobreviver a essa madrugada.



6 comentários:

  1. nossa...isso me prendeu a atenção, pareceu até q eu tava lendo Bukowsky, e outra coisa...seus diálogos estão muito bons, ótimo, muito envolvente.

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    1. Nossa, que legal que você gostou! Logo mais virá o Ato 2 hehe.

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  2. Olha, eu tinha escrito um comentário bastante grande, mas eu apaguei sem querer. Enfim, amei a narrativa e estou ansioso para o próximo capítulo.

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  3. hahahahaha, suave! Logo, logo vem o Ato 2.

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  4. Meus Deus nem acredito nele mas que narrativa incrível, me despertou do sono, me deixei levar, isso é muito grandioso, se fosse um livro eu compraria muito facilmente, me falta palavras pra descrever o que sinto vendo esse trampo tão bom

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