domingo, 28 de fevereiro de 2021

Jairo: um conto sobre o "pré" e o "conceito"


Ato 3: (Re)começo.

Há 11 meses voltei para casa. Minha mãe me ajudou a conseguir um emprego, sou auxiliar de limpeza no hospital que ela trabalha. Não acreditei que iria conseguir algo tão rápido, e pelo menos isso está me ajudando a reconstruir (ou melhor: construir) minha vida depois de tanta merda. Se for longe do tráfico e das coisas ruins que eu já fiz é bom o suficiente. Eu sei que “paguei” pelo o que eu fiz, mas minha consciência fica me cobrando, parece que não valeu nada do que eu fiz. Um conselho: nunca tire a vida de alguém... principalmente se for inocente.

Felizmente agora a realidade é outra. Estou fazendo um supletivo, logo poderei terminar o colégio. Conversei com minha mãe e decidi que vou fazer faculdade de Filosofia, quero poder ter mais conhecimento sobre a essência do homem. Eu acho que dessa forma vou aprender muita coisa e ter mais discernimento da minha linha de raciocínio. Além disso, eu sempre quis ser professor, quero ajudar e mostrar uma visão de mundo que mesmo eu pude enxergar. Entrar nesse papo sempre me deixa animado, parece que é um futuro “pleno”.

Eu penso sobre o quanto que é estranho estar fora da prisão depois de tanto tempo, tudo é diferente. A música, a televisão, os carros... é tudo bem mais evoluído do que eu pensei que iria acontecer. Por falar em música, isso é algo que eu passei a admirar bem mais depois que sai da prisão; antes não era algo que eu tinha um gosto tão definido, agora eu percebo do que eu gosto, tem sido maravilhoso. A cultura do rap e do hip hop principalmente, pois é algo que foi feito diretamente para falar da cultura, da resistência e da rotina de uma pessoa da periferia, algo que eu me identifico totalmente.

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Meu turno acabou, agora é aquela coisa: pegar ônibus, orar para que não esteja lotado, aceitar que está lotado e deixar a mente fluir até o fim da viagem. Dentro do ônibus é engraçado, eu penso como desigualdade social é algo impressionante. Pois há aquelas pessoas que estão dentro do ônibus, muitas tem o ônibus como seu único meio de transporte e dependem totalmente dele, se uma crise com os motoristas acontecer isso interveria em toda sua rotina. Há as pessoas fora do ônibus, vou começar pelas comuns: tem aquelas que usam carros ou motos populares. Algumas delas já tiveram que andar bastante de ônibus e conseguiram comprar um carro para ajuda-las, mas é engraçado porque a gasolina está praticamente o preço da passagem, e se algo acontecer com o carro ou moto eles precisariam voltar ao ônibus. Há aquelas pessoas tem carros bem caros também. Elas provavelmente nunca precisaram se preocupar muito ônibus, o preço da gasolina não é uma grande coisa (se o governante for uma pessoa “próxima” deles) e quando eles olham uma pessoa no ônibus eles não pensam no seu privilégio, mas que eles mereceram essa vida que pelo menos 4 gerações da família já têm. Isso me vem a algo que nunca foge a minha cabeça: um ônibus gasta bem menos que todos estes carros na rua. Se as condições de transportes públicos não fossem tão ruins, a poluição diminuiria bastante. Mas acredito que as grandes empresas não ligam para o meio ambiente o suficiente para pararem de ganhar com o preço da gasolina e da passagem.

Gosto sempre de lembrar de Principia, uma música que tem sido um mantra para a minha vida. Ela fala sobre as relações humanas e como a vida de um muda totalmente a de outro, dando a ideia de que se entendermos isso e colocássemos o amor assim traria um mundo melhor. Amar é difícil demais, então coloco o respeito antes de qualquer relação humana que eu vou ter.

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Já estou na quarta aula, agora estou estudando física, Leis de Newton. É engraçado como parece que tudo tem uma ligação: em um livro de Newton diz que quando um corpo entra em contato com outro, ele altera o destino do outro através do movimento, o nome do livro? Principia... E ainda dizem que humanas e exatas devem se destacar um acima do outro, os dois se ligam, por isso são importantes. Se as pessoas tivessem a maturidade de entender o quanto educação em contextos gerais são importantes, não teriam discussões banais como essa, as prisões também não estariam tão cheias, o Brasil não seria o terceiro país com a maior população carceraria; mas eu digo isso como se tivéssemos uma educação justa, se vivêssemos nessa utopia nem as prisões seriam necessárias.

Acabou a aula, volto pra casa. São quase onze da noite, o ônibus está vazio, sou o último passageiro. Quando desci tinha toda uma caminhada para chegar em casa, nessa dá para ir refletindo sobre a insegurança de voltar para casa sozinho assim. Meu medo é de um assaltante? Não, da polícia mesmo. De onde eu venho a polícia pode ser mais assustadora do que os bandidos. Além disso a favela tem aquela falsa segurança que o trafico traz; ninguém vai te assaltar, mas você sempre dará de cara com alguma criança que se torna um aviãozinho que pode morrer pela polícia, ou ir preso como eu... Não desejo nenhuma dessas alternativas para ninguém, mas tem garoto que faz de tudo por um par de tênis... ou por um prato de comida em casa.

Viro a esquina, estou chegando em casa. Ouvi uma sirene. Merda. Eles passaram correndo pra caramba, acho que nem prestaram a atenção em mim. Termino a volta para casa. Chego e vejo minha mãe me esperando, ela sempre faz isso. Ela vem a mim correndo.

- Ainda bem que você chegou! – ela me abraça. – Eles vão fazer uma operação aqui e me preocupei com você lá fora. Se te pegam vão ainda querer se justificarem falando que você já tinha passagem. Nem se importariam de você trabalhar e estudar. Tenho tanto medo disso – acho que ela iria começar a chorar, mas não fez isso.

- Está tudo bem. Eu já cheguei não há com o que se preocupar, pelo menos entre os nossos daqui de casa. Com quem está lá fora... eu espero que dê tudo certo – falei achando que confortaria, mas falhando.

- Infelizmente essa é uma realidade que para muitos é chamada de “mi, mi, mi” ou “vagabundagem”. Acham que é tão fácil simplesmente dar a volta por cima de tudo, sair da favela, ter outro emprego. Esse é o sonho de todo mundo, mas quem consegue fazer isso enquanto a vida parece ser tão amarga? – Acho que ela está emotiva hoje.

- Vida amarga, logo no país da cana-de-açúcar. Bem irônico, né? – Ri mesmo sabendo que isso era mais triste do que engraçado.

- Enfim, é melhor dormir, amanhã ainda é dia – Isso é verdade, a semana mal começou. – Sua formatura vai ser quando mesmo?

- Em 1 mês. Estamos revisando tudo para as provas finais. Depois disso quero entrar na faculdade logo.

- Mas vai dar certo, está tudo só começando. O tempo vai passar e você vai nem ver.

1 mês. Quase 1 ano fazia uma semana. A vida é algo que eu nunca vou entender quantas voltas ela vai dar, mas de certa forma é fascinante. Por isso a questiono tanto. É dolorosa, as vezes é triste, mas por um instante nisso tudo você consegue achar beleza nas coisas. Nesse resto de vida quero poder fazer o que acredito, quero mostrar minhas ideias e meus questionamentos, transformar a vida de quantos sejam; educação é poder. Mas ainda faltam 1 mês para o que quer que vá acontecer, mas sei que vai ser melhor do que quando eu já esperei ansiosamente para acabar uma semana da minha vida.


 Bom, dói em mim, mas eu precisava encerrar isso. Espero que gostem do fim da jornada do Jairo.